domingo, maio 11, 2008

Havia uma porta.

Havia uma porta. Sempre há uma porta. Havia rabiscado uma porção de vezes, naquele corredor solitário, fechado e acústico, branco e sombrio, de soalho de lajota. Ficava perto da do elevador, de madeira, e das escadarias, de metal, todas do mesmo tom marrom escuro. Era grossa. Entrava direto na cozinha. Por dentro, era pintada de branco, cor dos azulejos e do teto da minúscula. O visitante dava de cara com a pia e um pequeno lixo sobre. Com geladeira e fogão, acabava em três passadas.


A sala. A porta dela sempre aberta. Havia três colchões por trás dela. Era maior. Não muito grande, de todo modo. Logo se via que a casa acabava ali, mais o banheiro, que era do tamanho da cozinha. Havia uma mesa de rodinhas no início da sala. Pequena. Um sofá enorme e branco de frente, guarda-roupas para todos os lados. Um espelho de corpo inteiro encarava os visitantes. Uma grande janela de abrir pra cima dava para a avenida Nove de Julho, completamente entulhada de plantas, apesar da proibição do condomínio. Era até fácil dizer qual era a minha janela. Bastava apontar o ponto verde. Rodeando a sala, por cima das portas, uma gigantesca estante tapada de papéis brancos, mal alinhados, cheia de grandes caixas, que por sua vez continham coisas e mais coisas, de maneira que mamãe nunca sabia onde havia deixado o que procurava. Mas nunca jogava nada fora. Não que guardasse lixo. Apenas impedia que virasse. Garrafas, as que podia, copos, não importando se de plástico ou não. Até as colherinhas de café dos restaurantes não escapavam se fossem descartáveis. Tornavam-se potencialmente úteis. Ainda no alto, as samambaias.


Nenhum senso estético. A casa inteira era pintada de branco. Três cômodos pintados no extremo da economia. Uma cor só. Os azulejos do banheiro eram de outro tom, azul-banheiro, porque não tinham sido retirados na restauração daquele "kitnet", comprado por R$ 7.000,00 todo destruído, e restaurado, a partir dos encanamentos e eletricidade até a pintura. Mais economia. Nele, a máquina de lavar, um box malfeito e aestético, de barras de alumínio suportando placas de acrílico manchado, funcional, e um vaso sanitário cor de tijolo. O vitrô do banheiro era minúsculo e quebrado. Ferros podres. Em dez anos, mais. Os vidros translúcidos foram trocados. Havia ainda um vitrô bem alto, entre o banheiro e a cozinha, do qual era possível gritar qualquer coisa e estabelecer uma conversa quase normal entre alguém que preparava a comida e outro que tomava banho.


O computador, os livros, o armário ficavam num canto. Tudo muito junto, muito territorializado. Em 1 metro quadrado, era possível, mas não simultaneamente, abrir a estante de livros, usar o computador, com o teclado no colo, ou abrir o armário. Mas como apenas para dormir os três se juntavam, estendiam os colchões no chão e transformavam a sala em quarto, era até que fácil, com alguma imaginação e sem nenhuma televisão – depois de quebrada, virara objeto proibido pela generalíssima mamã – viver naquele cubículo.

CASA DA INFÂNCIA

Numa rua minúscula e quieta e curva e côncava, de asfalto cinza, rua Professora Bem-vinda Aparecida de Abreu Leme, minha casa. Do lado esquerdo do prédio branco e baixo de quatro andares, um estacionamento. Do lado direito, um gramadinho atrás das grades de uma construção silenciosa. No outro lado da rua, a casa do Luís. E outras coisas sem importância. Um estacionamentozinho para poucos carros se adiantava ao meu prédio branco e baixo, quase sempre quase vazio.

A porta do prédio foi à chave, antes de ser automática. A porta do prédio tinha um recuo, abrigo da chuva, lugar de criança sentar e dar o primeiro beijo. Logo ali ao lado, direito, a janela gradeada, ampla e cortinada de Luciana, loirinha eu-dela, geniosa, bem no térreo. Éramos namorados. Só a empregada dela sabia. Com certeza, só a empregada. Dançava pra mim ao som da Xuxa no rádio-gravador preto, de baiano da minha mãe. O mesmo gravador que serviu de sonoplastia à peça que Natália, Nara e eu apresentamos ao prédio, num cenário horripilante duma casa de cortinas. Reproduzia a porta rangendo daquele armário branco, que por si só já era assustador, na fita cassete que o Luís tão gentilmente cedeu. Apaixonado desejo precoce de mergulhar no oculto.

E por falar nisso, do outro lado da entrada, uma portinhola, uma escada para baixo e a casa da bruxa. Havia morrido, mas deixara um feitiço que a amarrara ao mundo dos vivos. Deixara um grande osso seu sob o tanque de lavar roupas, que ficava no quintal. Não avancei mais. Nem ninguém. Não me acreditaram. A casa, como sempre, continua vazia; o osso, insepulto. No extremo canto esquerdo, ladeando o quintal dela, um corredorzinho que podia passar um homem, dava acesso ao pátio interior. Dele, entrevia-se a cozinha, através do vitrô maltratado pelo tempo.

Eu morava no fim do pátio, na última janela do último andar, no extremo oposto da casa de Luciana. A minha janela era branca, de levantar, madeira grossa, composta por dezesseis retângulos de vidro, quatro a quatro. O quarto era quadrado, com uma cama grande, onde dormíamos eu e meu pai. Mamãe na sala. Certa noite tempestatesca, pela intuição sempre pronta, da queda do teto de um bloco de gesso escapara papai. Machucara um pouco a perna, a mesma que jogava futebol comigo, provavelmente frustrado ao perceber que o filho não nascera pra'quilo. A mesma perna do acidente que lhe daria um pino de platina num tombo absurdo provocado por uma ridícula poça de óleo de um posto de gasolina.

Seu filho, fraco e falante. Ele, na juventude, hombre fuerte y valiente. Brigão de sangue quente. Minha mãe fez dele cordeirinho. Certa vez, quando me disse que devíamos ir embora, culpando um cachorro, eu disse que chamasse a mamãe: – Ela não tem medo. Que nem tia Ana, um muque de derrubar boi brabo. Que nem meu vô. Mas pra fazer justiça, foi meu pai quem livrou tia Ana dum tipo que não queria deixar ela ir. Bateu na porta e de um soco deixou o canalha inconsciente todo o tempo de recolher as malas e sair porta afora. Ela morou em casa. Meio castelhano, cresci há quatro quadras do metrô.

E quatro anos é a idade da garupa na moto, indo pra creche. Tinha um capacete verde, de viseira de garrafa de guaraná. Sob um noite de chuva, há um quadra de casa, na rua de paralelepípedos, encurralados os três por uma kombi, tombamos. Queda. O capacete partiu. A casa ao lado me deu um copo de água com açúcar. Eu chorava. Voltamos. A cama do quarto. Café-com-leite, como sempre e sempre, ao acordar. O corredor (adoro corredores). O banheiro onde fazia meus mergulhos no grande barril. A sala. O rádio. O aquário em frente, porém afastado, da janela. Os peixes espada, maestria dos meus pais. Os suicidas. Os da maternidade. À noite, apagava a luz para deixá-los dormir, cansados de ir e vir. De frente para o corredor, a porta da rua, cuja tranca trancava sem chave e sempre me deixava do lado de fora. Triste, serviu pra ensinar que existia o vizinho, hábito que cultivei.

Simples, educado e gentil, sempre tive todas as portas abertas, exceto as dos corações feminis. Luciana foi embora. No mesmo recuo da entrada do prédio, vi sua partida. Sem beijo, sem nada. Conheci Natália, mas justificava que ainda namorava a ausente. Natália me ensinou a gostar de arte. Pai artista plástico. Ela também, é claro. Criamos jogos, jogamos. Foi embora. Fui embora. No dia da mudança, quis trazer um gatinho sarnento. Não pude. Mas trouxe um sentimento carente: de gente, de bicho, de rua, de amor. Agora, sentado à frente da tela do computador, procuro no meu quarto, da nova nova casa, tão sonhado, alguma poeira do concreto dos pátios e da rua. Alguma casca da tinta branca que banhava o interior da minha casa da infância.

Viagem

Nosso carro. Casados. Um grande, alto, espaçoso e prateado. Paramos num cantinho duma rua na praça. Cidadezinha mineira de interior. Cheia de autos estacionados mais pra lá. Coisa esquisita. Saí. Chegou uma senhora já pedindo licença pra entrar no carro. Surpreendentemente, minha ruivinha simplesmente abriu a porta e sailevantou levantossaiu. Deixou que a mulher manejasse o carro, desse uma volta em si, e estacionasse ao contrário. Gostou do carro. Perguntou quanto queríamos. Mas não está à venda! Como não? Aqui é a feira nacional de Não-sei-quê da Cidadezinha-de-nada! Mas que feira, que nada! O que vocês estão fazendo aqui, então? Ora, a rua é pública, minha senhora! A senhora, qual é mesmo seu nome? Raquel? Bem, Raquel, a senhora vai ter que me pagar o prejuízo! Quinze reais! Minha mulher já foi sacando a carteira. Peraí, madame! Quem vai ter que pagar é a senhora! Vem me incomodar e à minha mulher, que tá grávida assim do nada! Faz ela sair do carro, estamos de viagem, e ainda se acha no direito? Faça o favor de pagar a senhora! Eu quero uma polícia. A senhora vai pagar. Polícia! Não tem uma polícia que seja nesse fim de mundo? A mulher foi saindo de fininho, mas prometendo rebote. Demos um jeito de arrancar de lá. Que cidade de doidos!

Felixembriagante*

Meu perfume favorito é doce. Aparece nas situações mais inusitadas. Geralmente, descubro caminhando pelas ruas de manhãzinha ou ao anoitecer. Cheiro dum verdezinho suave e fugaz. Não conseguem prendê-lo em frascos. Mas pode-se cultivar o arbusto, arvorezinha de sombra boa, cuja flor, como o perfume, são pinceladas esbranquiçadas, numa bruma verde, formada de folhas na flor e de orvalho fresco no cheiro. Do mesmo modo, as flores minúsculas exalam um cheiro pequenino, miúdo, porém intenso. Felixembriagante.

Leve, como o sorriso que provoca. Calmo, porém ansioso, como o amor. Aparece à noite, pelas ruas, porque é luar pelas narinas, naquela luminosidade de sonho. Sua arvorezinha está naqueles lugares que guardam o carinho e que encontramos dobrando uma esquina. Suspiros do amor intransitivo. Como o nome sugere, é um perfume de mulher-mistério, da mulher mesma. Perfume da própria noite, que é mulher, e vaga frescamente por entre as brancas neblinas, Dama-da-Noite.


* felix: do latim, feliz, contente, satisfeito.

Machado, blogueiro do século XIX

Cá lia eu Esaú e Jacó lá pelo capítulo LXXV (assim mesmo, não me peça tradução). De repente, o narrador menciona uma uma “pessoa a quem li confidencialmente o capítulo passado”, ao qual ele chama de “meu correspondente”. Não pude deixar de espalhar a notícia. Já não há quem ignore o tamanho dos capítulos do danado. Parecem mais “posts” que capítulos! Então pensei num título nada honorífico ao nosso grande: primeiro blogueiro da humanidade.